Yuekina Yuka
Aiko se dirigia para a entrada norte da cidade, na ponte sobre o rio que nascia nos campos próximos ao Monte Íkaris Dokã. Os regimentos estavam voltando da guerra, naquela tarde, especialmente os Trinta Arqueiros de Yudá, membros da elite bélica do reino. Entre estes arqueiros, estava seu noivo Shu, convocado dois dias depois de pedi-la em casamento. Ela sabia que ele era experiente e que o próprio Rei Koga havia o convocado para sua guarda pessoal. Shu aceitou porque tinha a esperança que o soldo fosse o suficiente para garantir uma boa vida ao jovem casal, e Aiko concordou porque pretendia abrir um empório de vestidos com o marido, que adorava suas criações de modista. Naquele dia ela usava um vestido leve, amarelo e florido, que marcou o dia primaveril em que se conheceram. O começo de uma vida nova para ela que perdera sua família inteira ao longo dos últimos doze anos. Primeiro os avós, numa tsunami que arrasou a costa do sul há doze anos. Depois o pai e o irmão, nas guerras e batalhas de invasão dos Cavaleiros das Trevas. E por fim a mãe, já idosa, falecida pelo avanço da idade e das doenças crônicas que lhe abateram por conta da melancolia pela perda dos entes amados. A casa de Aiko ficava nas redondezas, fora da zona urbana de Akayu, em um pequeno sítio próximo ao vulcão adormecido. Lá o solo era fértil e os gramados eram grandiosos e verdes, de modo que ela e o marido mantinham um pomar de diversas árvores, além de criarem cavalos para atender as demandas da capital. A jovem porém via no amor a chance de ter uma vida diferente, e apegou-se à Shu assim como Shu se apegou a ela, em uma dança de almas que foi harmônica e doce até o dia da separação. Aiko decidiu que seu futuro seria marcado pela vida que construiria e não pela tragédia familiar de seu passado, com a esperança fortalecida pelo amor.
A jovem noiva atravessava eufórica os campos cultivados ao norte de Akayu, buscando chegar ao ponto onde a multidão aguardava o retorno dos Trinta Arqueiros de Yudá e dos soldados que voltavam vitoriosos da guerra. Corria quase perdendo suas sandálias enquanto deslizava pelo gramado fofo pulando pedras e dando saltos, como uma antílope trotando pelas savanas. Quando passou pela ponte em arco avistou a aglomeração formada por homens, mulheres, crianças e idosos, que aguardavam sob a sombra de uma frondosa árvore centenária, uma linda cerejeira de flores brancas.
Algum sinal deles? Achei que a esta altura já conseguiríamos ouvi-los, são um grupo grande afinal - disse a noiva para as pessoas que encaravam o caminho que atravessava o vale. Uma senhora de vestes compridas e manto bege saiu do meio da multidão e dirigiu-se a ela.
O prefeito de Shantô disse que eles saíram de lá logo após o amanhecer. Devem chegar aqui a qualquer momento pela estrada que atravessa o desfiladeiro. Consegui ver alguma poeira dos cavalos lá do alto da Pagoda das Almas. - disse uma senhora idosa com um olhar amável. Usava um manto bege empoeirado e seu cabelo era arrumado em duas longas tranças que lhe caíam sobre o busto, como o cabelo de uma jovem menina.
Senhora Yuka, será que estão todos bem? Ouvi dizer que as batalhas foram violentas - perguntou um rapaz mancebo que vestia uma camisa bem alinhada com detalhes vermelhos e dourados.
Temos que ter esperança… a vitória sempre tem um custo, e vamos torcer para que todos tenham voltado são e salvos. - O rapaz olhou para baixo e engoliu em seco, ao passo que Yuka complementou - mas foi sua mãe quem que mandou a mensagem hoje cedo Nori, ela é uma grande arqueira afinal. - disse a idosa sorrindo. Os olhos do menino se iluminaram e lacrimejaram com um sorriso orgulhoso que lhe brotou no rosto.
Segundos depois, o profundo som dos cascos dos cavalos ecoou de dentro do desfiladeiro, chamando a atenção de todos. Algumas crianças subiam em rochedos e árvores próximas para ver se conseguiam ver o regimento. Houve alvíssaras e comemorações entre a multidão, mas rapidamente o som foi diminuindo conforme avistaram os arqueiros e arqueiras de Yudá cavalgando em alta velocidade para a cidade, deixando um rastro de poeira e barulho que parecia o início de uma tempestade. Ao ver os cidadãos, eles começaram a gritar sons ininteligíveis e fazer gestos com as mãos. Alguns traziam seus arcos empunhados e olhavam para trás. Outros pareciam bastante feridos, e todos tinham a expressão do cansaço contrapondo-se a um olhar de raiva e pressa.
PARA A CIDADE! TODOS DE VOLTA PARA A CIDADE! VOLTEM PARA TRÁS DA PONTE! - foi o primeiro grito que todos conseguiram entender. Quando o primeiro arqueiro montado chegou, dirigiu-se a Yuka:
Senhora Yuka, leve todos de volta e soem os alarmes! Fomos emboscados no desfiladeiro, vários Cavaleiros das Trevas nos atacaram! Voltem para cidade e se preparem, agora! - disse o jovem.
Papai, papai! - disse um menino que desceu de uma árvore e correu em direção ao cavalo. O homem sorriu e estendeu a mão ao menino, algumas mulheres ajudaram e ele colocou a criança a sua frente na montaria. Sua expressão voltou-se para a seriedade conforme o grupo montado chegou a multidão.
Onde está o Rei Kogarashi? E os mercenários do deserto que deveriam lhes proteger? - Disse Yuka examinando os rostos de todos os homens e mulheres nos cavalos que se aproximavam.
O Regimento do Rei se perdeu na batalha. Os mercenários nos traíram. Nenhum dos que estavam com ele retornou. Ouvimos boatos de que o rei fora cativo num acampamento do deserto, mas não temos tempo para isso agora… O inimigo está a nossa porta!
Vocês ouviram o Saito! Todos para cidade AGORA! - Disse a velha maga em tom de ordem. Uma gritaria começou e se misturou ao som da cavalgada que envolvia o grupo e que adentrava velozmente os territórios da cidade. Os arqueiros e arqueiras reconheciam seus parentes no meio da multidão e lhes auxiliam a voltar para a Akayu, ajudando-os a montar nos cavalos e carregando as mercadorias. Quando a multidão se foi e o último homem montado atravessou a ponte, Yuka se posicionou olhando para a estrada. Com seu cajado, riscou formas no ar e pronunciou um feitiço de proteção. Uma fina película mágica desceu da abóboda celeste, quase invisível, e se estendeu pela margem norte do rio, que passou a ser o limite da Barreira Mágica da cidade. Quando Yuka virou-se de costas e voltou-se para a cidade, para voltar pela ponte, tomou um susto.
Aiko! O que está fazendo parada aí na ponte? Não ouviu o que os arqueiros disseram, tem cavaleiros vindo! Temos que voltar e alertar todos para pegarem seus mantimentos e irem para os abrigos nas montanhas! - disse a senhora se aproximando da jovem. A mulher estava parada, com os braços abaixados e olhando fixamente para a estrada do desfiladeiro. Sua expressão era séria, e uma lágrima vertia de seu olho esquerdo. Yuka abaixou a cabeça e pôs a mão no ombro da jovem.
Nós precisamos ir Aiko. Talvez os outros tenham alguma informação que não puderam explicar. O Shu pode ter pego outro caminho…
Ele era do Regimento do Rei. Guarda pessoal do Rei Kogarashi. - a voz de Aiko era seca, séria, como quem descrevera a certeza de saber que uma pedra solta cai ao chão. Agora ela já chorava muitas lágrimas, mas sua expressão mantinha-se fixa no desfiladeiro.
Aiko, vamos perguntar aos outros e saber mais detalhes sobre o que aconteceu, estamos no meio de um ataque, por favor venha comigo… - dizia Yuka, mas suas palavras pareciam não ser ouvidas pela jovem.
Ele prometeu que voltaria. Eu escolhi este vestido porque ele me viu com esta roupa na primeira vez em que nós nos vimos em Yaruz. Ele disse que nós casaríamos com a fita e a taça. Disse que me levaria para ver os castelos e tavernas, os circos… - dizia Aiko, chorando sem desviar o olhar. Yuka reparou que a jovem parecia num estar entrando em um tipo de estado de dissociação, talvez provocado pelo choque do luto.
A poeira da cavalgada começou a baixar, e uma silhueta vinha caminhando calmamente pela estrada, assobiando uma melodia indistinguível por conta de sua distância. Ao ver a silhueta, Yuka ficou pálida, e passou a puxar Aiko pelo braço. Aiko acompanhou Yuka até a outra extremidade da ponte, onde foi deixada pela maga.
Aiko! Volte para cidade e pergunte aos outros onde está o Shu! Aiko! Aiko! Céus, então se esconda aqui do lado da ponte e fique quieta! - Disse Yuka suando angustiada. Ela deixou a jovem fora da vista da ponte, e voltou para o local onde pronunciou as palavras mágicas, na saída norte da ponte. A melodia assobiada agora era compreensível, triste e doce como um quadro bem pintado da senhora morte.
Nesse tempo, a silhueta chegava até a barreira mágica. Revelava-se como uma mulher de roupas pretas, usando um grande poncho e um coque predendo seus cabelos escuros. Tinha pele branca cadavérica e olhos muito pretos, com uma expressão marcada e severa, mas um sorriso afiado na linha de sua boca, que não mostrava os dentes.
Você não é bem vinda aqui Luxandria, usurpadora de Rivolid, Cavaleira da Maldade! - Verociferou Yuka, a uma distância segura. - Nosso reino sagrado é protegido pelo poder ancestral dos dragões das montanhas, com a benção dos monges do Templo de Yudá e dos Guardiões de Kereato. Você não tem poder para penetrar nossas barreiras, e jamais entrará em nossa cidade!
Ora ora se não é pequena Yuekina Yuka,a última maga de Yudá. Como você envelheceu, parece até que foi ontem que a Cavalaria matou seu pai, seus irmãos, seu marido, seus filhos… Vocês mortais são como flores, não importa o quão lindo e surpreendente seja o seu florescer, vão acabar todos murchos e se decompondo no chão, hahahahahaha! - A mulher caminhou até a membrana translúcida, tentou tocá-la e não conseguiu transpô-la, mantendo sempre o olhar malicioso ao encarar a idosa.
De fato, vocês estão protegidos. - constatou. - Não esperava uma mentira sua afinal. E é boa barreira bem forte. De fato, ninguém da Cavalaria vai conseguir entrar aí, óh grande Yuka, Regente do Reino dos pescadores fedidos de Yudá! - disse com desprezo. - Seu reino fétido sobreviverá por mais alguns instantes, mas aviso que a morte do rei Kogarashi é só o prelúdio da derrocada desse lugarejo de pescadores desletrados! E digo mais, os tesouros que vocês mantém na Pagoda das Almas não vão ajudá-los a evitar a decadência de sua linhagem. Escreva minhas palavras Yuka, antes do anoitecer, Akayu será destruída e você morrerá. E tenho dito. - Disse a Cavaleira Luxandria, erguendo seu queixo ao lançar a ofensa em tom de profecia.
Me pergunto o que realmente lhe trouxe até aqui, maldita! Está perdendo seu tempo ou me distraindo? Quais são suas reais intenções? Vá embora para sua Fortaleza, onde os covardes da Cavalaria confabulam contra os reinos livres! O povo de Yudá lutará sempre, e de um jeito ou de outro, sobreviverá! - arguiu a velha maga.
Em uma coisa você tem razão velha maga…de fato, haverá algum ‘fim’! Mas este fim está bem diante dos seus olhos… ou melhor dizendo, atrás de você. - disse Luxandria, sorrindo como um tubarão e indicando com a mão algo atrás da maga. Vagarosamente Yuka virou-se, sabendo que de algum modo, o jovem Aiko havia se revelado. A viuvinha caminhava descalça pela ponte com seus olhos brilhando num brilho branco muito intenso, cantando notas da mesma melodia que a Cavaleira assobiava momento antes. Ela parecia hipnotizada, em transe, caminhando em direção de Yuka.
MAS O QUE FOI QUE VOCÊ FEZ? O que é isso? Que maldição é essa que você lançou sobre esta jovem!? Responda Cavaleira da Corrupção! - vociferou a maga.
Eu não fiz nada, velha bruxa, por mais que me aborreça dizer. Estavamos devorando seus arqueiros quando senti que uma Cavaleira antiga ia se manifestar aqui, e vim conferir se minha percepção mágica estava realmente acurada. Então é fato, minha teoria estava correta. No fim do guerra, corações se partem, histórias chegam ao fim e outras começam. E quando as notícias chegam, o desespero surge no coração dos mais vulneráveis. Magnífico - a mulher de cabelos pretos enumerava os fatos em tom jocoso, como alguém que declama uma poesia de um jeito exageradamente gestual. Imagino como ela vai fazer. - disse a Cavaleira.
Ela então sorriu, olhou para as duas mulheres sobre a ponte, fez um aceno com a cabeça e deu meia volta indo embora, sem dizer mais nenhuma palavra. Parecia incorporar alguma pressa em caminhar para longe dali. Yuka estava confusa mas resolveu voltar-se para a jovem viúva que caminhava encantada pela ponte.
Aiko! Aiko! O que é isso que você está cantando? Que língua é essa? Não se mova! Nem pense em sair da ponte, lá fora é perigoso, para onde você está indo? - e nenhuma resposta saia da boca da jovem, apenas um canto que se tornava cada vez mais cristalino e alto.
Desesperada para detê-la, Yuka começou a conjurar toda sorte de feitiços de purificação, exorcismo, até mesmo paralisia. Nada fez efeito sobre a mulher possuída, e era possível ver uma aura translúcida na forma de uma mulher gigante envolvendo Aiko. Conforme a avançava, ela acrescentava palavras à melodia que se repetia, e a aura se tornava mais opaca, passando do branco ao prateado reluzente. Quando ela saiu da ponte, começou a caminhar em direção ao monte Ikarís Dokã, o vulcão adormecido de Yudá.
Um tremor forte foi sentido quando a jovem pos o primeiro pé sobre a terra firme, e cada vez que sua melodia chegava ao estranho refrão, um novo tremor acontecia, cada vez mais intenso. Yuka chamava-a pelo seu nome, enviou uma mensagem mágica contando o que estava acontecendo para os membros da corte na Pagoda das Almas, sede do governo de Yudá, mas sabia que não havia tempo de voltar para pedir por ajuda. A maga tentou usar as raízes das plantas para envolvê-la e detê-las, mas a aura mágica dissipou todos os encantos e feitiços que ela proferia contra a viúva possuída. Tentou usar o vento, a água do rio, as rochas do campo. Nada atravessava a aura mágica, e nenhuma palavra ou som parecia ser ouvido pela jovem que cantava repetidamente a canção, agora com uma voz muito bela que não era a sua. Quando as duas chegaram aos pés do Ikaris Dokã, uma explosão forte aconteceu no seu cume, anunciando o início de uma erupção. O vulcão que estava inativo a pelo menos dois mil anos despertou com força e fúria, expelindo uma enorme coluna de fumaça que cobriu toda a região com escuridão.
Yuka percebeu que o canto de Aiko estava despertando o vulcão e que a jovem parecia caminhar para um caminho antigo que levava a cratera a partir de um túnel rústico que era usado pelos monges para chegar às câmaras de meditação construídas no interior da montanha. Percebendo a urgência da situação, Yuka invocou raios, fogo, espíritos e todo feitiço e encanto que conseguiu lembrar. Nada surtiu efeito. Quando ela conjurou uma enorme explosão para selar a entrada do túnel que dava acesso à cratera, Aiko começou a flutuar no ar, voando verticalmente para o alto da coluna de fumaça no alto do vulcão. Em volta de seu corpo espirais de vento e ar rodopiavam indicando uma poderosa energia mágica emanando da aura prateada, agora muito brilhante e visível que lhe envolvia.
Logo, a jovem Aiko era um ponto prateado entrando no meio da nuvem piroclástica e desaparecendo para sempre. Tão logo seu corpo sumiu na escuridão das nuvens, estas passaram a tomar a forma de uma grande mulher, uma bela cantora élfica, cuja voz agora poderia ser ouvida em toda a região. Seu canto era melancólico e denso, cujo volume ocupava e se sobrepunha a todo e qualquer som que pudesse ser dito. A fumaça tomou contorno, e o contorno tomou vida. A mulher gigante cujo busto se progetava do vulcão invocou uma poderosa erupção, e os veios de lava formavam seu vestido luminoso no formato do cone vulcânico. Quando a explosão atingisse seu ápice, a cidade de Akayu e seus habitantes estariam condenados, tanto pelo ar tóxico, quanto pela lava, quanto pelas cinzas que agora precipitaram sobre os campos setentrionais do reino.
Yuka conhecia um feitiço, um ritual, um único sortilégio capaz de parar uma erupção vulcânica. Ela usou sua magia para desobstruir o túnel, entrou pelo caminho cavernoso e nunca mais foi vista. Ninguém sabe o que ela fez a partir deste momento.
Momentos depois, o povo de Akayu que fugia às pressas para as montanhas do sudeste, viu aliviado a mulher gigante de fumaça se transformar em uma estátua de pedra, e o vulcão silenciar-se e resfriar-se com um grande grito de dor abafado. Até os dias de hoje, qualquer viajante que chegue a Yudá verá o grande vulcão cujo topo tem o formato do busto de uma bela mulher apontando para a cidade. A senhora Yuka deu sua vida para salvar o reino, como e o que foi feito, ninguém sabe explicar.
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